segunda-feira, 23 de julho de 2012

A Estrada da Vida

Por Leandro Hoehne
Fotos de registro da estrada por Ângela Garcia e Garcia

Para ler ouvindo Il Viaggio Continua, de Nino Rota, do filme La Strada de Fellini.



Porque viajar em oito pessoas, dentro de uma Kombi, pesando o limite extra da 1 tonelada, com bagagem literalmente nos pés e nas cabeças, mais o bagageiro repleto e completo em todos os espaços possíveis e passíveis de ocupação?

Porque seguir num rumo certo até certo nível, sem saber se nestas paragens fará chuva ou fará sol, se haverá gente boa ou prefeitura tola, comida quentinha no prato na mesa ou bolacha de emergência? Porque viajar sem saber direito onde dormir, para seguir, afinal, se a próxima cidade nem é assim, aos olhos da capital, e do capitalista, de tanta 'importância'?

Caconde, onde?



Pouso Feliz ou Porto Alegre? Pouso Alegre e Porto Feliz. 


Para que dormir numa noite serenada e fria em São Luiz do Paraitinga e acordar no pique de uma praça de uma igreja que não existe mais?





Porque?


Porque cruzar por estradinhas na velocidade máxima, de uma kombi 93, batendo o ponteiro dos 40 Km/h na curva da subida?


Seguir adiante sem saber da curva do próximo instante e jogar moedas na estrada para Ogum, cantar à São Jorge e ver que não é só de guerra que é feito o mundo.   

Tem um quê de romântica essa viagem. E é isso que talvez chame atenção. Mas não a veja no romantismo do sonho impossível de Hollywood ou da novela das oito. As fotos poderiam ser de filme, assim como as historias. As paisagens poderiam ser locações e as comidas de cozinheiros contratados para compor um belo cenário de almoço em família. As vilas poderiam ser cenográficas e tudo estar submetido ao olhar-indivíduo de um diretor. Sem contar os figurantes locais para um dado realista...

Mas não, não é filme sobre o ideal romântico de encontrar um sentido perdido de coletividade, liberdade, sonho e juventude. Não está fora, numa fabricação de significados, na ilusão do enredo. Está dentro, no instante, no acontecimento. A Kombi é de verdade, cuidada com carinho. As pessoas são amigas de verdade, cuidadas com carinho. A hospitalidade dos que nos recebem também é de verdade. As comidas, bebidas e sobremesas também. As paisagens, as estradinhas e as belas fotografias são reais. E aí uma outra noção de realidade é possível... A realidade efêmera do instante. Digamos que há uma realidade felliniana, possível, onde não há mais limites entre a sombra e a caverna¹ - não há mais fundamentos em Platão e é necessário pensar diferente, a partir de uma outra lógica que não mais a da representação da vida, mas da arte como uma própria vida outra.


Éramos personagens de Fellini fora do filme, sem fazer disso a evocação de um simbolismo etéreo, ou a realização do desejo contemporâneo de que a imagem se transforme em vida; desejo este latente desde que o cinema nos ensinou a ilusionar em favor da transformação vida em imagem. É vida. Vida. 


É clara essa diferença? Entre a vida e representação da vida? 


Me pergunto cada vez mais, antes de perguntar a qualquer outro: está claro para mim ou somos cada vez mais profundamente sujeitos da ditadura das sombras fabricadas por um sistema de poderes e de apoderamento selvagem do simbólico, onde não sou mais eu assim que aciono o próximo click do mouse ou do controle remoto? Sombras fabricadoras de nossa subjetividade, nosso universo simbólico, nossa cultura e, portanto, natureza.


Me pergunto então se neste mundo que nos sufoca e evoca à velocidade, ao consumismo e à superficialidade das relações, há espaço para que seja aberta uma fenda no tempo-espaço, real-simbólico, uma brecha nas relações de poder e não-poder, para que nos façamos a seguinte pergunta: qual a realidade que queremos?


Não é a de seres-humanos assistindo as sombras passarem na parede de nossas ocas, vazias e geladas cavernas. Me lembro de uma cena do filme A Estrada da Vida, de Fellini, onde Gelsomina abandona Zampano em um estábulo vazio e ruma sem rumo, para encontrar ou ser encontrada, na impossibilidade de conceber uma realidade a qual está obrigada a viver. Talvez o estábulo seja um pouco dessa caverna e nós um pouco de Gelsomina.




Quando vivemos um tempo onde as ideologias não dialogam, onde as possibilidades a serem vislumbradas são extremistas - a da mudança, revolução como evento-espetáculo; a da conservação, o extremo do conservadorismo - as pequenas nuanças da vida passam desapercebidas. O simples passa a ser banal e menor frente às grandiozidades fabricadas por nossa sociedade do espetáculo.

Não seguimos viajando para revolucionar nada, muito menos para alienar-se num escapar dos problemas. Continuamos sendo, vivendo e trabalhando em nossas periferias, levantando questões de militância, de atitude política, de mobilização e articulação de pessoas. Mas tivemos a oportunidade de revolucionar as relações, refletir sobre o estar artista em um contexto onde a arte e o publico não ocupam o mesmo lugar que nas metrópoles capitais, enquanto conceito. Sim, a arte é diferente porque é diferente o contexto - fica claro e bate forte os versos de Criolo dizendo que "não existe amor em SP", de Milton Nascimento dizendo "nada é igual se for bem natural, se for de coração, além do bem e do mal, coisas da vida", da oração de São Jorge cantada por Caetano e Bem Jor dizendo "para que meus inimigos tenham pés e não me alcancem (...) e nem mesmo pensamento eles possam ter para me fazerem mal " e de Lennon dizendo "all we need is love". Metaforicamente claro.

Talvez viajamos para nos distanciar de nós mesmos e, afinal, nos re-encontramos estranhos, brechtianamente estranhos.

Talvez seja essa a revolução? 


Não. Nem "re", nem "e" e nem "in", mas só volução². Voluto eterno, um rolar dos acontecimentos com a simplicidade de quem vive por viver. Assim fica o sorriso do menino que nos ensina uma piada nova (sabe o que o burro faz no rio? Reflexo.), o choro de pai, mãe e filha quando cantamos a despedida, o olhar tranquilo de um padre que reconhece algo não tão tranquilo para sua igreja, as histórias cheias de emoção contadas por nossa musa inspiradora Dna Iracema, o olho no olho de quem... nos olha no olho. 


Simples assim, como a estrada da vida.









1 - Mito da Caverna, de Platão. Indico a tradução contida no livro "Convite à Filosofia" de Marilena Chauí.
2 -Ler texto de Bia Medeiros, pelo coletivo Corpos Informáticos, em http://www.corpos.org/folds/frcorp24.html

4 comentários:

  1. O dom, de se perguntar. Indagar o porque!

    Artistas, não nascem... são criados.

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  2. O QUE FALAR APÓS LER ESTAS PALAVRAS DE PROFUNDA RIQUEZA E DE PROFUNDO CONHECIMENTO DA VIDA, DO VIER, DO SENTIR, DO ESTAR PRESENTE ONDE MENOS SE ESPERA ALGO OU ALGUÉM???
    EM SUAS PALAVRAS HERMANO HOEHNE ACREDITO QUE NOSSOS COROAS DEVAM ESTAR DANDO ALTAS RISADAS DE NOSSASA VENTURAS E PRINCIPALMENTE DOS RISCOS QUE CORREMOS COM AQUILO QUE ACREDITAMOS, RISCOS ESTES QUE NÃO ERAM OS MESMOS DE NOSSOS PRODUTORES MAS QUE SERVIRAM DE ENSINAMENTO E EMBAZAMENTO PARA SERMOS O QUE SOMOS.
    ESTOU MUITO ANSIOSO APRA BATER UM PAPO COM TODOS VOCÊS SOBRE ESTA LOUQISSÍMA E VERDADEIRA VIAJEM DE KOMBI.
    TALVEZ NÃO TENHAMOS TEMPO EM VIDA O SUFICIENTE PARA ABSORVER TODA ESTA EXPERIÊNCIA, AMS O QUE IMPORTA MESMO É CONTINUARMOS A LUTAR E ACREDITAR EM NOSSA ARTE E VALORIZAR A NOSSA CULTURA.
    PARABÉNS PARCEIRO, PARABÉNS GALERA, PARABÉNS A KOMBI QUE AGUENTOU MAIS DE 1 TONELADA DE SONHOS, ESPERANÇAS, MEDOS, ANGÚSTIAS E QUE TROUXE 2 TONELADAS, DE HISTÓRIAS, RIQUEZAS IMATERIAIS E MUITAS, MAS MUITAS PALHAÇADAS.
    É NÓIXXX.

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  3. Bonito texto, porque foi bonita a viagem e são bonitas as lembranças...

    Logo menos, MAIS!!!

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  4. Lindo texto. A viagem pode ser intrepretada de várias maneiras, quem viu a Kombi passar e parar, com essa trupe maravilhosa, com certeza, alimentou a alma e reabasteceu os sonhos.

    Obrigada por ter me dado um alimento tão precioso.

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